quinta-feira, 11 de março de 2010

Memorial da Doença

Minha mulher teve a esclerose múltipla diagnosticada há 11 anos. De lá para cá, sua vida virou um túnel do tempo depressivo que não há rivotril que dê jeito. A doença se manifesta em surtos, algumas vezes remissivos com a utilização de medicamento, mas mesmo assim sempre fica uma sequelinha.
O leitor desse texto que, por acaso, é um desgraçado que nem eu, já aprendeu que cada caso específicamente é um caso e que não é possível se generalizar sintomas da doença, já que seus sintomas aparecem como falhas nos sentidos, na libido ou no labirinto, só se reunindo num diagnóstico quando alguém mais conscensioso exige uma ressonância magnética.
Outra coisa que ele- leitor – aprendeu foi que, de sequelinha em sequelinha, as impossibilidades vão se formando.
Em minha mulher, a doença surgiu com a perda da libido. Desse jejum até o diagnóstico final, passando por vários especialistas e exames modernos, foram três anos daquilo que eu hoje considero vida boa, já que a interferência era mínima. O médico que me fez o diagnóstico foi até meio filha da puta. “Eu, se fosse você, faria um seguro de vida e perdas por invalidez”, disse.
Saí de lá e enchi o pote. Ainda tive que ir busca-la no jornal e pedir um atestado de 15 dias para exames futuros. Ela-tadinha- não entendeu nada. Esse foi o primeiro passo desse algoritmo de calvário que minha vida se tornou, explorando todas as possibilidades de sofrimento, perda, desilusão e tudo o mais que possa me configurar um triste, acabado e conformado- coisa que não sou nem sinto.
Hoje, meu calvário é vê-la, quase toda inutilizada e sem o sistema cognitivo em ordem, obrigada a usar fralda geriátrica e assisti-la numa cadeira que a torna frágil e insegura na própria direção corporal. Logo ela.
Essa é a primeira vez que toco nesse assunto que também me fragiliza, já que o somatório de perdas é grande demais para toda a minha consciência. Essa é a minha primeira catarse. Outras virão.

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